sábado, 19 de março de 2011

nota de charles Kiefer

1.
Todo o produto cultural - ainda o mais alienado e superficial - oculta na massa da aparência a massa sólida e susbtanciosa que o projeta. A um olhar rápido, e que não penetra a matéria observada, os blogs não passam de "trenzinhos elétricos de diversão do ego", em que adolescentes desorientados estariam fazendo mera catarse, como têm dito aqueles que condenam, geralmente sem querer conhecer, essa nova forma de expressão.

Num certo aspecto, a acusação é verdadeira. Nesses novos espaços de comunicação, o ego passeia - como paseou, solene, na tragédia áurea, na lírica clássica e no drama burguês - porque o texto real ou virtual é a casa do ego, onde o ser lança seus fundamentos. E no labirinto do ego devorador é de pouca ou de nenhuma importância a diferença entre a dor de Homero e a angústia de uma estagiária de comunicação.

É bom que o ego passeie pelos blogs, e que se expanda, e que se desnude, especialmente nesta fase fundadora, de pura ex-pressão, quando o que é quer vir para fora, embora saia apertado e de baixo de vaias. De tanto mostrar-se, a expressão, no choque permanente contra o leito do rio da experiência, arredondará as suas formas, polirá as suas arestas e se transformará em arte. (O que chamamaos de Homero é a lenta sedimentação de um processo popular polifônico, que a tardia gramática helenista transformou em modelo de "bem-escrever".) Então, o olhar apressado há de deter-se sobre o novo objeto e será capaz de ad-mirá-lo

Em sua protoforma, os blogs "parecem" ser a escória de uma civilização voyeurística, o destilado mais recente da tecnificação absoluta. No entanto, como à natureza apavora o absoluto e as afirmações categóricas, ela própria se encarregará de se vingar, transformando, ainda uma vez, o periférico e marginal em central e integrado, de tal forma que os blogs poderão vir a ser a mais autêntica forma de expressão artística do século XXI.


KIEFER, Charles. para ser escritor. SP: Leya, 2010.

segunda-feira, 7 de março de 2011

haicai de Millôr

Na poça da rua
O vira lata
Lambe a lua


[Millôr Fernandes]

escritos de Barthes

A escrita artesanal, colocada no interior do patrimônio burguês, não perturba nenhuma ordem; privada de outros combates, o escritor possui uma paixão que basta para justificá-lo: a gestação da forma. 

(...)

Nesse mesmo esforço de desvencilhamento da linguagem literária, eis uma outra solução: criar uma escrita branca, libertada de toda servidão a uma ordem marcada pela linguagem.    



BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. SP: Martins Fontes, 2004.

domingo, 6 de março de 2011

haicais de alice

luzes acesas
vozes amigas
chove melhor



por uma só fresta
entra toda a vida
que o sol empresta 



rede ao vento
se torce de saudade
sem você dentro




[Alice Ruiz]

GUTILLA, Rodolfo Witzig (org.). Haicai. SP: Cia da Letras, 2009.