sexta-feira, 9 de setembro de 2011

a palavra dos outros

inços e aquilos: manoel de barros: o barro no nome de maoel não foi por acaso

Desobjeto [manoel de barros]

O menino que era esquerdo viu no meio do quintal um pente. O pente estava próximo de não ser mais um pente. Estaria mais perto de ser uma folha dentada. Dentada um tanto que já se havia incuído no chão que nem era uma pedra um caramujo um sapo. Era alguma coisa nova o pente. O chão teria comido logo um pouco dos seus dentes. Camadas de areia e formigas roeram seu organismo. Se é que um pente tem organismo. 
O fato é que o pente estava sem costela. Não se pederia mais dizer de aquela coisa fora um pente ou um leque. As cores a chifre de que fora feito o pente deram lugar a um esverdeado a musgo. Acho que os bichos do lugar mijavam muito naquele desobjeto. O fato é que o pente perdera a sua personalidade. Estava encostado às raízes de uma árvore e não servia mais nem para pentear macaco. O menino que era esquerdo e tinha cacoete pra poeta, justamente ele enxergara o pente naquele estado terminal. E o menino deu para imaginar que o pente, naquele estado, já estaria incorporado à natureza como um rio, um osso, um lagarto. Eu acho que as árvores colaboravam na solidão daquele pente. 




BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infãncias de Manoel de Barros. SP: Editora Planeta do Brasil, 2010.

Pintura [manoel de barros]

Sempre compreendo o que faço depois que já fiz. O que sempre faço nem seja uma aplicação de estudos. É sempre uma descoberta. Não é nada procurado. É achado mesmo. Como se andasse num brejo e desse no sapo. Acho que é defeito de nascença isso. Igual como se a gente nacesse de quatro olhares ou de quatro orelhas. Um dia tentei desenhar as formas da manhã sem lápis. Já pensou? Por primeiro havia que humanizar a manhã. Torná-la biológica. Fazê-la mulher. Antesmente eu tentara coisificar as pessoas e humanizar as coisas. Porém humanizar o tempo! Umas parte do tempo? Era dose. Entretanto eu tentei. Pintei sem lápis a Manhã de pernas abertas para o sol.  A manhã era mulher e estava de pernas abertas para o sol. Na ocasião eu aprendera em Vieira (Padre Antônio, 1604, Lisboa) eu aprendera que as imagens pintadas com palavras eram para se ver de ouvir.  Então seria o caso de se ouvir a frase pra se enxergar a Manhã de pernas abertas? Estava humanizada essa beleza de tempo. E com os seus passarinhos, e as águas e o sol a fecundar o trecho. Arrisquei fazer isso com a Manhã, na cega. Depois que meu avô me ensinou que eu pintara a imagem erótica da Manhã. Isso fora.




BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infãncias de Manoel de Barros. SP: Editora Planeta do Brasil, 2010. p. 85.

Cabeludinho [manoel de barros]

Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada ma fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste. E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas informam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai morena, não me escreve/ que eu não sei a ler. Aquele preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro.




BARROS, Manoel de. Memórias inventadas: as infãncias de Manoel de Barros. SP: Editora Planeta do Brasil, 2010.

sábado, 19 de março de 2011

nota de charles Kiefer

1.
Todo o produto cultural - ainda o mais alienado e superficial - oculta na massa da aparência a massa sólida e susbtanciosa que o projeta. A um olhar rápido, e que não penetra a matéria observada, os blogs não passam de "trenzinhos elétricos de diversão do ego", em que adolescentes desorientados estariam fazendo mera catarse, como têm dito aqueles que condenam, geralmente sem querer conhecer, essa nova forma de expressão.

Num certo aspecto, a acusação é verdadeira. Nesses novos espaços de comunicação, o ego passeia - como paseou, solene, na tragédia áurea, na lírica clássica e no drama burguês - porque o texto real ou virtual é a casa do ego, onde o ser lança seus fundamentos. E no labirinto do ego devorador é de pouca ou de nenhuma importância a diferença entre a dor de Homero e a angústia de uma estagiária de comunicação.

É bom que o ego passeie pelos blogs, e que se expanda, e que se desnude, especialmente nesta fase fundadora, de pura ex-pressão, quando o que é quer vir para fora, embora saia apertado e de baixo de vaias. De tanto mostrar-se, a expressão, no choque permanente contra o leito do rio da experiência, arredondará as suas formas, polirá as suas arestas e se transformará em arte. (O que chamamaos de Homero é a lenta sedimentação de um processo popular polifônico, que a tardia gramática helenista transformou em modelo de "bem-escrever".) Então, o olhar apressado há de deter-se sobre o novo objeto e será capaz de ad-mirá-lo

Em sua protoforma, os blogs "parecem" ser a escória de uma civilização voyeurística, o destilado mais recente da tecnificação absoluta. No entanto, como à natureza apavora o absoluto e as afirmações categóricas, ela própria se encarregará de se vingar, transformando, ainda uma vez, o periférico e marginal em central e integrado, de tal forma que os blogs poderão vir a ser a mais autêntica forma de expressão artística do século XXI.


KIEFER, Charles. para ser escritor. SP: Leya, 2010.

segunda-feira, 7 de março de 2011

haicai de Millôr

Na poça da rua
O vira lata
Lambe a lua


[Millôr Fernandes]

escritos de Barthes

A escrita artesanal, colocada no interior do patrimônio burguês, não perturba nenhuma ordem; privada de outros combates, o escritor possui uma paixão que basta para justificá-lo: a gestação da forma. 

(...)

Nesse mesmo esforço de desvencilhamento da linguagem literária, eis uma outra solução: criar uma escrita branca, libertada de toda servidão a uma ordem marcada pela linguagem.    



BARTHES, Roland. O grau zero da escrita. SP: Martins Fontes, 2004.

domingo, 6 de março de 2011

haicais de alice

luzes acesas
vozes amigas
chove melhor



por uma só fresta
entra toda a vida
que o sol empresta 



rede ao vento
se torce de saudade
sem você dentro




[Alice Ruiz]

GUTILLA, Rodolfo Witzig (org.). Haicai. SP: Cia da Letras, 2009.

sábado, 19 de fevereiro de 2011

declarações de Leonilson

Eu não me preocupo com a forma, não me preocupo com a cor, não me preocupo com o lugar. Praticamente não tenho essas preocupações estéticas. Quando vou fazer um trabalho, estou diante do material e me preocupo com as partes que se juntam, por exemplo, dois tons de feltro, ou uma camisa rasgada como um "voile."

[depoimento no vídeo "Com o oceano inteiro para nadar", direção de Karen Harley]


Eu odeio o mercado de arte... É horrível lidar com essas pessoas; imagina ter que entregar meus trabalhos para um filho da puta desses fazer exposição?! Eu quero que meus trabalhos levem a mim e não a uma conta bancária.

[entrevista]




SALGADO, Renata. (org.). Imagem escrita. RJ: Graal, 1999.

O espelho de Rosa

Devia ou não devia contar-lhe, por motivos de talvez. Do que digo, decubro, deduzo. Será, se? Apalpo o evidente? Tresbusco. Será este nosso desengonço e mundo o plano - intersecção de planos - onde se completam de fazer as almas?

Se sim, a "vida" consiste em experiência extrema e séria; sua técnica - ou pelo menos parte - exigindo o consciente alijamento , o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o "salto mortale"... - digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem do toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas... E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: - "Você chegou a existir?"

Sim? Mas, então, está irremediavelmente destruída a concepção de vivermos em agradável acaso, sem razão nenhuma, num vale de bobagens? Disse. Se me permite, espero, agora, sua opinião, mesma, do senhor, sobre tanto assunto. Solicito os reparos que se digne dar-me, a mim, servo do senhor, recente amigo, mas companheiro no amor da ciência, de seus transviados acertos e de seus esbarros titubeados. Sim?


[O espelho]


ROSA, João Guimarães. Primeira estórias. 1 ed. especial. RJ: Nova Fronteira, 2005.    

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Delírios de Rimbaud

Para mim. A história de minhas loucuras. Há muito me gabava de possuir todas as paisagens possíveis, e julgava irrisórias as celebridades da pintura e da poesia moderna.

Gostava das pinturas idiotas, em portas, decorações, telas circenses, placas, iluminuras populares; a literatura fora de moda, o latim da igreja, livros eróticos sem ortografia, romances de nossos antepassados, contos de fadas, pequenos livros infantis, velhas óperas, estribilhos ingênuos, ritmos ingênuos.

Sonhava com as cruzadas, viagens de descobertas de que não existem relatos, repúblicas sem histórias, guerras de religião esmagadas, revoluções de costumes, deslocamentos de raças e continentes: acreditava em todas as magias.

Inventava a cor das vogais! - A negro, E brabco, I vermelho, O azul, U verde. Regulava a forma e o movimento de cada consoante, e, com ritmos instintivos, me vangloriava de ter inventado um verbo poético acessível, um dia ou outro, a todos os sentidos. Era comigo traduzi-los.

Foi um primeiro experimento. Escrevia silêncios, noites, anotava o inexprimível. Fixava vertigens.


[Delírios, II, Alquimia do verbo]



 RIMBAUD, Arthur. Uma temporada no inferno. POA: L&PM, 2006.

abrir o livro aleatoriamente 04

Cresci sob um teto sossegado,
meu sonho era um pequinino sonho meu.
Na ciência dos cuidados fui treinado.

Agora, entre meu ser e o ser alheio
a linha de fronteira se rompeu.


[CÂMARA DE ECOS]


 SALOMÃO, Waly. Algaravias. RJ: Ed. 34, 1996.

abrir o livro aleatoriamente 03

Pensamento vem de fora
e pensa que vem de dentro,
pensamento que expectora
o que no meu peito penso.



ANTUNES , Arnaldo. Tudos. 6ª ed. SP: Iluminuras, 2001.

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

abrir o livro aleatoriamente 02

     acabou a farra
formigas mascam
     restos de cigarra



LEMISNKI, Paulo.la vie en close. SP: Brasiliense, 2000. 

abrir o livro aleatoriamente 01

      sobressalto
esse desenho abstrato
     minha sombra no asfalto



LEMISNKI, Paulo.la vie en close. SP: Brasiliense, 2000. 

abertura

mais um blog. o terceiro. este para acomodar a palavra dos outros. um depósito de referências. um arquivo de pensamentos alheios. uma "idéiateca". compilação. coletânea de  textos. ou trechos de. 

escritos de artistas, poetas, escritores, filósofos, estudiosos, pensadores e afins.


com títulos de postagens dados livremente por mim. 
e com referência bibliografica, quando houver.   

meus outros blogs:
http://www.incoseaquilos.blogspot.com/ ,  este com meus escritos criativos.
http://www.temnosotao.blogspot.com/ , este com meus escritos sobre arte.